22 abril 2020

O CORONAVIRUS ESTÁ MATANDO SILENCIOSAMENTE. VEJA COMO ENFRENTÁ-LO ANTES QUE SEJA TRDE DEMAIS

O que aprendi durante dez dias de tratamento contra a pneumonia por covid-19 no Hospital Bellevue
Richard Levitan, The New York Times (*)
22 de abril de 2020 | 14h13
Trabalho com medicina de emergência há trinta anos. Em 1994, inventei um sistema de imagens para ensinar a intubação, o procedimento de inserção de tubos respiratórios. Por isso, comecei a fazer pesquisas sobre esse procedimento e, tempos depois, passei a ministrar cursos sobre vias aéreas a médicos em todo o mundo nas últimas duas décadas.
Então, no fim de março, quando uma multidão de pacientes de covid-19 começou a sobrecarregar os hospitais da cidade de Nova York, eu me ofereci para passar dez dias no Bellevue, ajudando o hospital onde me formei. Durante esses dias, percebi que não estamos detectando a pneumonia mortal que o vírus causa cedo o suficiente e que poderíamos estar fazendo mais para evitar que os pacientes precisem de ventiladores – e morram.
Na longa viagem de minha casa em New Hampshire até Nova York, liguei para meu amigo Nick Caputo, médico de emergência no Bronx, que já estava no olho do furacão. Eu queria saber o que iria enfrentar, como me garantir minha segurança e quais eram suas ideias sobre o gerenciamento das vias aéreas nessa doença. “Rich”, ele disse, “nunca tinha visto uma coisa dessas na vida”.
Ele estava certo. A pneumonia causada pelo coronavírus teve um impacto impressionante no sistema hospitalar da cidade. Normalmente, um pronto-socorro atende um conjunto de pacientes que variam de condições graves, como ataques cardíacos, derrames e lesões traumáticas, a quadros que não representam risco de morte, como ferimentos leves, intoxicação, lesões ortopédicas e enxaqueca.
Porém, durante minha recente passagem pelo Bellevue, quase todos os pacientes no pronto-socorro tiveram pneumonia por covid-19. Na primeira hora do meu primeiro plantão, inseri tubos de respiração em dois pacientes.
Mesmo pacientes sem queixas respiratórias tinham pneumonia por covid. O paciente esfaqueado no ombro, a quem radiografamos porque temíamos que ele estivesse com um dos pulmões colapsados, na verdade tinha pneumonia por covid. Nos pacientes em que realizamos tomografias computadorizadas por lesões em quedas também encontramos pneumonia por covid. O mesmo aconteceu com pacientes idosos que desmaiaram por razões desconhecidas e vários pacientes diabéticos.
Eis aqui o que realmente nos surpreendeu: esses pacientes não relataram nenhuma sensação de problemas respiratórios, mesmo que os raios X de tórax mostrassem pneumonia difusa e o oxigênio estivesse abaixo do normal. Como isso podia acontecer?
Estamos apenas começando a entender que a pneumonia por covid inicialmente causa uma forma de privação de oxigênio que chamamos de “hipóxia silenciosa” – silenciosa porque tem uma natureza insidiosa e difícil de detectar.
A pneumonia é uma infecção dos pulmões na qual os sacos de ar se enchem de líquido ou pus. Normalmente, os pacientes apresentam desconforto no peito, dor na respiração e outros problemas respiratórios. Mas, quando a pneumonia por covid ataca, os pacientes não sentem falta de ar, mesmo quando os níveis de oxigênio caem. E, quando enfim sentem dificuldade de respirar, têm níveis alarmantemente baixos de oxigênio e pneumonia moderada a grave (como se vê nas radiografias de tórax). A saturação normal de oxigênio para a maioria das pessoas ao nível do mar fica entre 94% a 100%; os pacientes com pneumonia por covid que vi chegaram a ter saturações de oxigênio de apenas 50%.
Para minha surpresa, quase todos os pacientes que vi disseram que estavam doentes havia uma semana, com febre, tosse, dor de estômago e fadiga, mas só ficaram sem fôlego no dia em que procuraram o hospital. Claramente, sua pneumonia já estava instalada dias antes, mas, quando eles sentiram que tinham de ir ao hospital, já se encontravam em estado crítico.
Nos departamentos de emergência, inserimos tubos de respiração em pacientes críticos por várias razões. Mas, nos meus trinta anos de experiência, a maioria dos pacientes com necessidade de intubação de emergência estava em choque, com estado mental alterado ou dificuldade de respirar. Pacientes que precisam de intubação por causa de hipóxia aguda muitas vezes estão inconscientes ou usando todos os músculos possíveis para respirar. Estão sob sofrimento extremo. Os casos de pneumonia por covid são bem diferentes.
A grande maioria dos pacientes com pneumonia por covid que tratei no hospital apresentava saturação de oxigênio extraordinariamente baixa na triagem – em níveis aparentemente incompatíveis com a vida. Mas continuavam mexendo em seus telefones celulares quando os colocávamos nos monitores. Mesmo respirando mais rápido, pareciam ter um sofrimento relativamente mínimo, apesar dos níveis perigosamente baixos de oxigênio e da terrível pneumonia nas radiografias do tórax.
Estamos apenas começando a entender por que isso acontece. O coronavírus ataca as células pulmonares que produzem surfactante. Essa substância ajuda a manter os sacos de ar dos pulmões abertos entre as respirações e é fundamental para a normalidade da função pulmonar. Quando a inflamação da pneumonia por covid começa, ela provoca o colapso dos sacos de ar e os níveis de oxigênio caem. No entanto, os pulmões inicialmente permanecem “em conformidade”, ainda não rígidos nem cheios de líquido. Isso significa que os pacientes ainda podem expelir dióxido de carbono – e, sem acúmulo de dióxido de carbono, os pacientes não sentem falta de ar.
Os pacientes compensam o baixo oxigênio no sangue respirando mais rápido e mais profundamente – e isso acontece sem que eles percebam. Essa hipóxia silenciosa e a resposta fisiológica do paciente a ela causam ainda mais inflamação e mais colapso de bolsas de ar. A pneumonia piora e os níveis de oxigênio despencam. A verdade é que o paciente está lesionando seus próprios pulmões ao respirar cada vez mais forte. Vinte por cento dos pacientes com pneumonia por covid passam para uma segunda e mais mortal fase de lesão pulmonar. O líquido se acumula e os pulmões ficam rígidos. O dióxido de carbono aumenta e os pacientes desenvolvem insuficiência respiratória aguda.
Quando os pacientes começam a ter dificuldades visíveis para respirar e chegam ao hospital com níveis perigosamente baixos de oxigênio, muitos precisam de ventilador.
O fato de a hipóxia silenciosa progredir rapidamente para a insuficiência respiratória explica os casos de pacientes de covid-19 que morrem de repente, sem chegarem a sentir falta de ar. (Parece que a maioria dos pacientes de covid-19 apresenta sintomas relativamente leves e supera a doença em uma ou duas semanas, sem tratamento).
Um dos principais motivos pelos quais essa pandemia está afetando nosso sistema de saúde é a alarmante gravidade dos pacientes que chegam ao pronto-socorro com lesões pulmonares. A covid-19 mata os pulmões, impiedosamente. E, como muitos pacientes não procuram o hospital até que a pneumonia já esteja bem avançada, muitos acabam precisando de ventiladores, ocasionando escassez de aparelhos. E, mesmo quando estão nos ventiladores, muitos morrem.
Evitar o uso de ventilador é uma grande vitória para o paciente e para o sistema de saúde. Os recursos necessários para pacientes em ventiladores são espantosos. Pacientes ventilados precisam de vários sedativos para que não resistam à ventilação nem removam acidentalmente os tubos respiratórios; precisam de acessos intravenosos e arteriais, de bombas e medicamentos intravenosos. Além do tubo na traqueia, precisam de tubos no estômago e na bexiga. É necessário que as equipes mexam cada paciente duas vezes por dia, virando-o de barriga para cima e depois de costas, para melhorar a função pulmonar.
Existe uma maneira de identificarmos mais pacientes com pneumonia por covid mais cedo e tratá-los com mais eficácia – sem que seja necessário aguardar um teste de coronavírus em hospital ou consultório médico. Trata-se da detecção precoce de hipóxia silenciosa por meio de um dispositivo médico comum, que pode ser adquirido sem receita médica na maioria das farmácias: um oxímetro de pulso. 
Fazer a oximetria de pulso é tão simples quanto usar um termômetro. Basta apertar o botão para ligar o dispositivo e colocá-lo na ponta do dedo. Em alguns segundos, o visor apresenta dois números: saturação de oxigênio e frequência cardíaca. Os oxímetros de pulso são extremamente confiáveis na detecção de problemas de oxigenação e batimentos cardíacos elevados.
Os oxímetros de pulso ajudaram a salvar a vida de dois médicos de emergência que conheço, alertando-os desde o início sobre a necessidade de tratamento. Quando eles perceberam que os níveis de oxigênio estavam caindo, ambos foram para o hospital e se recuperaram (um deles precisou de mais tempo e tratamento). Ao que parece, a detecção da hipóxia, o tratamento precoce e o monitoramento cuidadoso também funcionaram para o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson.
A detecção generalizada por oximetria de pulso para pneumonia por covid – com as pessoas fazendo testes em si mesmas com dispositivos domésticos ou indo a clínicas e consultórios médicos – poderia estabelecer um sistema de alerta precoce para os tipos de problemas respiratórios associados à pneumonia por covid.
As pessoas que usam os dispositivos domésticos teriam de consultar seus médicos para reduzir o número de pessoas que procuram os hospitais desnecessariamente por algum equívoco na interpretação dos dados do dispositivo. Também pode haver alguns pacientes com problemas pulmonares crônicos não conhecidos e com saturação de oxigênio limítrofe ou levemente baixa não relacionada à covid-19.
Todos os pacientes que testaram positivo para o coronavírus devem fazer o monitoramento da oximetria de pulso por duas semanas, período durante o qual geralmente se desenvolve a pneumonia por covid. Todas as pessoas com tosse, fadiga e febre também devem fazer o monitoramento do oxímetro de pulso, mesmo que não tenham feito o teste de vírus ou que o teste tenha dado negativo, porque esses testes têm precisão de apenas 70%. A grande maioria dos americanos que foram expostos ao vírus não o sabe.
Há outras coisas que podemos fazer para evitar o recurso imediato à intubação e ao ventilador. As manobras de posicionamento do paciente (com os pacientes deitados de bruços e de lado) abrem os pulmões inferiores e posteriores, partes mais afetadas na pneumonia por covid. A oxigenação e o posicionamento ajudaram os pacientes a respirar com mais facilidade e, ao que parece, impediram a progressão da doença em muitos casos. Segundo um estudo preliminar do Dr. Caputo, essa estratégia ajudou a evitar que três em cada quatro pacientes com pneumonia por covid avançada precisassem de ventilador nas primeiras 24 horas.
Até o momento, a covid-19 matou mais de 40.600 pessoas em todo o país – mais de 10 mil somente no estado de Nova York. Os oxímetros não são 100% precisos e não são uma panaceia. Haverá mortes e consequências ruins que não são evitáveis. Ainda não sabemos ao certo por que certos pacientes ficam tão doentes ou por que alguns desenvolvem falência de múltiplos órgãos. Muitos idosos, já debilitados por doenças crônicas, e as pessoas com doença pulmonar subjacente ficam muito mal com pneumonia por covid, apesar do tratamento agressivo.
Mas podemos fazer mais para combater o vírus. No momento, muitos serviços de emergência estão sendo arrasados por essa doença – ou aguardando seu impacto. Devemos direcionar recursos para identificar e tratar a fase inicial da pneumonia por covid mais cedo, examinando a hipóxia silenciosa.
Está na hora de nos anteciparmos a esse vírus, em vez de apenas corrermos atrás dele.
(*) Tradução de Renato Prelorentzou, publicada no jornal O Estado de São Paulo

Nenhum comentário:

Postar um comentário