02 janeiro 2024

A democracia além das urnas - 2023 foi o 17.º ano consecutivo em que a liberdade global regrediu

O artigo do Leonardo Coutinho também se insere no contexto do post anteriormente já publicado neste Blog, ou seja, "objetos" - em seu sentido mais amplo, que se deve ter o cuidado de guardá-los e, claro, de não esquecê-los.

Boa leitura.

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A democracia além das urnas

Por Leonardo Coutinho, 30/12/2023 - Gazeta do Povo

O ditador chinês, Xi Jinping, e o presidente russo, Vladimir Putin, 
em foto de 2016| Foto: EFE/Ernesto Arias


Nada menos que 40 países realizarão eleições em 2024. Mais de 40% da população mundial estará diretamente envolvida nos processos eleitorais deste ano que se inicia. Mas os impactos dos resultados das urnas serão globais. A lista serve para nos lembrar que democracia vai além das eleições e não é a única medida de sua saúde. Não faltam exemplos de regimes autoritários que usam as urnas como uma fachada para legitimar o que de fato são: ditaduras.

A Rússia é de longe o mais bem acabado dos exemplos. Sob o comando de Vladimir Putin, as eleições tornaram-se meras formalidades para a manutenção de seu poder. Não há concorrência de fato ou nem sequer liberdade de expressão. O jogo é jogado segundo as regras do dono da bola. Além do simulacro eleitoral de Putin, o mundo assistirá a processos tão ficcionais na Venezuela, Belarus e no Irã, para citar apenas os casos mais esdrúxulos.

Os chavistas adoram listar a overdose de eleições realizadas sob o regime para refutar quem diz que falta democracia por lá. O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, sempre que pode, reproduz o mesmo discurso para justificar a legitimidade do regime herdado por seu companheiro Nicolás Maduro.

Os países que vão às urnas em 2024 têm ampla variedade de áreas, economia e influência. Vão desde as ditaduras já citadas, passando por pontos nevrálgicos no cenário geopolítico mundial como Taiwan, Índia e Paquistão; caóticos como o Sudão do Sul e chegando aos estáveis Áustria, Bélgica e Reino Unido. A eleição presidencial dos Estados Unidos será aquela que chamará mais a atenção. Mas ela não deveria ser observada sem o conjunto em disputa e as ameaças à crença na democracia e nos sistemas eleitorais.

Ao mesmo tempo em que Rússia, Irã, Venezuela e seus aliados, Cuba e Nicarágua, usam suas eleições fajutas como escudo, eles trabalham para minar a confiança na democracia. Em 2016, a Rússia fez isso com maestria nos Estados Unidos, quando fez a imprensa e o establishment político acreditarem que houve uma interferência suficientemente capaz de intervir no resultado da eleição que levou Donald Trump ao poder.

Em 2020, quando Trump perdeu para Biden, Moscou fez o mesmo. Mas desta vez para valer. Teleguiou a base tresloucada do republicano pelas teorias do QAnon e plantou a semente da descrença nas instituições democráticas e no Ocidente. A baderna que resultou na invasão do Capitólio em janeiro de 2021 foi o resultado mais visível desse esforço das autocracias para minar as democracias. Um levantamento da organização Freedom House mostrou que 2023 foi o 17.º ano consecutivo em que a liberdade global regrediu.

Parte disso se deve aos ataques sistemáticos à liberdade de expressão – que é um direito essencial para o pleno funcionamento da democracia e que antecede as eleições, direito a votar e ser votado. Restrições à liberdade de imprensa, regulamentações on-line e medidas contra o discurso de ódio estão ultrapassando os limites do remédio e estão se tornando veneno. Enquanto de um lado parcelas significativas das sociedades ocidentais demonstram insatisfação crescente com o funcionamento atual da democracia, de outro quem não vive sob as regras democráticas quer exportar para o mundo o seu modelo de governança e vida.

É chocante pensar que aqueles que se desenvolveram graças à democracia, nos Estados Unidos e Europa, acham que a culpa da desigualdade do mundo é justamente da democracia. Estão acreditando que a “democracia” é coisa de elite e que mantém os pobres cada vez mais pobres e os ricos cada vez mais ricos. Parece piada, mas é real. Assim como ditadores querem dizer que não existe uma democracia apenas, mas várias – a tal democracia relativa. Abusam da evidente pluralidade dos regimes democráticos para tentar traficar seus regimes como sendo modelos locais de democracia. A China trabalha duro com essa teoria, comprando corações e mentes.

Em 2024, guerras e conflitos afetarão as transições. Os ucranianos deveriam realizar eleições no primeiro trimestre, já que o mandato de cinco anos de Volodymyr Zelensky terminará em maio. Muito dificilmente isso ocorrerá e os russos usarão a anomalia para demonstrar como a Ucrânia é antidemocrática. Vejam só...

Os impactos geopolíticos e econômicos das eleições servirão de parâmetro para entender a reorganização do mundo com a redistribuição de poderes entre China e Estados Unidos. Um teste para a eficácia dos esforços de Xi Jinping na captura de aliados pelo mundo, frente à capacidade dos Estados Unidos nos seus esforços de esvaziar a influência chinesa. Sem exagero algum, o resultado das urnas em 2024 definirá o mundo por muitos anos.

Feliz ano novo em um mundo novo.



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