
Felizmente o posicionamento do Dr. Ives não é único. Ao contrário, é igual ao de milhares de outros brasileiros do bem. Que não tarde a surgir alguém como o Albert Battel, o oficial nazista que enfrentou a SS, arriscou a vida para salvar os prisioneiros judeus. E mais, ele, ao fazer isto percebeu que não estava sozinho. Querendo conhecer mais um pouco sofre este fato nazista clique aqui.
O Dr. Ives também não está sozinho.
Editorial do Estadão de 14 de novembro de 2025
UM PROCESSO ABSURDO
O caso Tagliaferro – que, por denunciar um suposto abuso de Moraes, virou réu e será julgado pelo próprio juiz denunciado – expõe um Supremo que transforma a exceção em método
Nenhum país se torna autocrático do dia para a noite. A degeneração institucional é um processo gradual, em que medidas “excepcionais”, no início incômodas, passam a ser aceitas como rotina. No Brasil, esse processo ganhou rosto e método. Sob o pretexto de defender a democracia, o Supremo Tribunal Federal (STF) consolidou uma forma de poder que dissolve os freios e contrapesos constitucionais. O caso de Eduardo Tagliaferro – o ex-assessor do ministro Alexandre de Moraes transformado em réu pelo próprio ministro que ele denunciou – é o retrato mais nítido de uma Corte que se julga infalível, e por isso se permite tudo. É um tribunal que, em vez de corrigir abusos, os institucionaliza.
Segundo Tagliaferro, havia uma estrutura paralela dentro do Tribunal Superior Eleitoral, usada para monitorar críticos e produzir relatórios “sob medida” que justificavam censuras e bloqueios. A ordem, segundo mensagens atribuídas ao gabinete de Moraes e divulgadas pela Folha de S.Paulo, era explícita: “Use a criatividade”. Quando o denunciante expôs o suposto desvio, foi acusado de violar o sigilo funcional e passou a ser julgado pelo mesmo magistrado cujas irregularidades apontara. No Brasil de hoje, quem denuncia o abuso vira réu, e o juiz do caso é o acusado de praticar o abuso.
A perversão jurídica é tão evidente quanto constrangedora. Moraes atua, simultaneamente, como vítima, investigador e julgador – e o tribunal age como cúmplice passivo. A Procuradoria-Geral da República, em vez de apurar as denúncias feitas pelo ex-assessor, preferiu denunciá-lo. O processo tramita em foro indevido, e a decisão que tornou Tagliaferro réu por, entre outras acusações, “abolição violenta do Estado Democrático de Direito” foi tomada no plenário virtual, sem sustentação oral presencial e contraditório efetivo. Mensagens entre Tagliaferro e seu advogado chegaram a ser tornadas públicas, violando o sigilo profissional. Em nenhum Estado de Direito isso é justiça. É abuso de autoridade.
O escândalo não é circunstancial. O que está em jogo é a mutação da exceção em sistema. As mesmas violações se repetem com metódica naturalidade: inquéritos secretos, elásticos e intermináveis, censura prévia, mandados de busca por opiniões, prisões preventivas que se eternizam, decisões monocráticas que suspendem leis e calam vozes. A reação à barbárie do 8 de Janeiro degenerou num regime de tutela permanente. O “Estado de exceção” virou expediente administrativo; o poder de julgar, instrumento para intimidar; e a toga, um salvo-conduto ao arbítrio.
Essa lógica moralista substitui o Direito por cruzadas de salvação. A toga transformou-se em armadura, e o juiz, em parte interessada do próprio veredito. A imparcialidade virou fraqueza; a prudência, álibi dos que se calam. O Supremo já não age como intérprete da Constituição, mas como seu substituto, convencido de que encarna o bem e pode combater o mal à base de canetadas judiciais. O STF, afinal, parece ter descoberto o moto-perpétuo da moralidade: julga, absolve a si mesmo e aplaude a própria virtude. É a liturgia do poder travestida de zelo cívico.
Os ministros precisam fazer uma autocrítica, reafirmando o devido processo, a separação entre acusar e julgar e a humildade de absolver quando há dúvida, pois a autoridade da Justiça nasce da forma, não da força. A democracia não precisa de guardiões armados de exceção, mas de juízes capazes de obedecer às suas regras. Só quem compreende seus limites pode exercer legitimamente o poder. E é esse senso de limite que o STF parece ter pulverizado.
O caso Tagliaferro não é um acidente, é um sintoma. É o espelho de uma Corte que, a pretexto de salvar a República, decidiu que está acima dela. Não se defende a democracia traindo os princípios que a definem. Não se preserva a liberdade por meio da censura, nem a Constituição por meio da violação de suas garantias. Quando a exceção se torna método, a lei deixa de proteger o cidadão e passa a proteger o poder. E nenhuma democracia sobrevive muito tempo a essa impostura, sobretudo quando ela se traveste de virtude e fala em nome da lei.
Nenhum comentário:
Postar um comentário