Translate

04 janeiro 2025

O feto e os likes: como as redes sociais estão destruindo nossa saúde mental

É hora de repensarmos nosso uso exagerado das redes sociais.

Hoje, 4 de janeiro, o influenciador Thiago Nigro, conhecido como Primo Rico, gerou uma onda de indignação ao publicar nas redes sociais uma foto do feto expelido por sua esposa, Maíra Cardi, após um aborto espontâneo. O público, que já estava chocado com o vídeo postado anteriormente, no qual Maíra registrava o momento em que soube do aborto, ficou ainda mais perplexo com o quanto o casal está disposto a se expor por likes. O caso rapidamente se tornou um dos assuntos mais comentados nas redes sociais, dominando as primeiras posições dos trending topics no X (antigo Twitter).


Longe de querer julgar o casal, que passa por um momento extremamente doloroso — cada um lida com o luto de forma diferente —, proponho aqui uma reflexão sobre o uso das redes sociais. Não apenas sobre o vício e os limites da exposição pessoal online, mas também sobre o que consumimos e incentivamos com nossos cliques e compartilhamentos.

As redes sociais, por si só, não são intrinsecamente ruins. Elas conectam pessoas, democratizam o acesso à informação e criam oportunidades econômicas. No entanto, elas representam um fenômeno novo demais, e ainda não sabemos como lidar com seus impactos. Na história da humanidade, tivemos diversas revoluções tecnológicas que alteraram drasticamente as relações sociais: o telégrafo, o rádio, a televisão. Cada uma trouxe mudanças profundas, mas as transformações atuais ocorrem numa velocidade sem precedentes. Estamos no epicentro de uma revolução social que aconteceu rápida e silenciosamente, e tivemos pouco tempo para nos adaptar ou ajustar nossa conduta.

O problema maior é que, estando dentro desse momento, não conseguimos perceber o impacto total. Podemos sentir que há algo errado, mas enxergar o quadro completo é difícil. Estamos tão imersos no presente que ignoramos os danos que podem surgir no futuro.

Já parou para pensar quanto tempo perdemos nas redes sociais? Gastamos horas debatendo com estranhos na internet, muitas vezes em discussões fúteis, como defender político A ou B, ou rolando feeds intermináveis de conteúdos irrelevantes. Esse comportamento alimenta um ciclo de recompensas instantâneas, com a liberação de dopamina no cérebro. É prazeroso, mas custa caro. Estamos nos transformando em zumbis digitais, sempre em busca da próxima notificação, curtida ou comentário.

A destruição silenciosa da saúde mental

Estudos recentes associam o uso excessivo de redes sociais a sintomas de ansiedade, insônia, depressão e baixa autoestima. Passamos tanto tempo tentando nos conectar virtualmente que nos desconectamos de nós mesmos e das pessoas ao nosso redor. Nossa saúde mental está em declínio, e o pior é que muitos sequer percebem que estão adoecendo.

O brasileiro é o vice-campeão mundial no tempo gasto em redes sociais. Passamos, em média, mais de nove horas por dia conectados. Agora, pare e reflita: o que você poderia fazer diariamente com esse tempo? Dá para cursar uma faculdade, malhar na academia, passar mais tempo com a família, desenvolver novos hobbies ou até mesmo ter um segundo emprego. Mas estamos presos nesse vício, e a maioria de nós não percebe.

Se para os adultos os efeitos já são devastadores, imagine para crianças e adolescentes. Enquanto gerações anteriores cresceram brincando nas ruas, socializando com amigos e explorando o mundo real, as crianças de hoje estão confinadas dentro de casa, em parte devido à violência urbana e à falta de segurança. Para muitos pais, deixar os filhos imersos na internet parece uma solução prática, mas essa falsa sensação de segurança esconde um problema ainda maior.

As crianças estão perdendo a capacidade de brincar e interagir socialmente. Em festas, é comum vê-las presas a telas, cada uma isolada em seu próprio mundo digital. Estão sendo educadas por algoritmos e crescendo sem saber o que é a vida fora do ambiente virtual. Isso é perigoso, pois os efeitos colaterais desse comportamento ainda não são completamente conhecidos. No curto prazo, já observamos aumento nos índices de ansiedade, déficit de atenção, dificuldades de socialização e comportamentos compulsivos. Crianças doentes tornam-se adultos igualmente doentes. E esses futuros adultos precisarão lidar com os mesmos problemas, ou até piores, ao criar seus próprios filhos.

Monetização da hiperexposição

Outro problema é a hiperexposição. Queremos compartilhar tudo nas redes sociais: desde momentos triviais do dia a dia até questões profundamente pessoais. Hoje, muitos querem ser influenciadores digitais, o que implica em assumir o papel de “blogueirinho” e publicar dezenas de stories diários como parte de uma rotina incessante de exposição. Porém, essa prática traz riscos consideráveis. Além de comprometer nossa privacidade e abrir brechas para golpes e crimes, vivemos uma cultura onde a validação externa, medida em likes e seguidores, se torna uma obsessão.

Crianças, cujas vidas muitas vezes são compartilhadas sem critério pelos próprios pais, tornam-se alvos fáceis para pedófilos. Idosos, cada vez mais conectados, também se tornam vulneráveis a golpes financeiros e fraudes, devido à falta de familiaridade com os mecanismos de segurança digital. Nossa exposição contínua cria oportunidades para invasões de privacidade, chantagens e outros crimes.

No caso de Thiago Nigro e Maíra Cardi, temos um exemplo extremo de monetização da hiperexposição. Eles transformaram sua vida pessoal em um produto de consumo para milhões de seguidores. Embora o casal ganhe muito dinheiro com essa prática, é necessário questionar: a que preço? Alguns momentos exigem privacidade e cuidado com as próprias feridas. O público pode ser implacável, e os comentários maldosos que o casal recebeu após as publicações são um reflexo disso. A falta de limites entre o público e o privado pode transformar um momento de luto em espetáculo, expondo a dor a um julgamento coletivo.

O bizarro como forma de monetização

Outro fenômeno alarmante nas redes sociais é como o conteúdo bizarro se torna viral. Casos chocantes, como o do feto expelido por Maíra Cardi, chamam atenção e acabam alimentando a monetização por meio da indignação coletiva. Não estou dizendo que Thiago Nigro e Maíra Cardi fizeram isso intencionalmente, mas esse padrão é recorrente. O choque vende, e a viralização se dá muitas vezes pela combinação de curiosidade mórbida e compartilhamentos indignados.

Isso lembra muito os antigos circos dos horrores, também chamados de shows de aberrações, onde pessoas consideradas bizarras ou deficientes eram exploradas como atrações. Hoje, algo semelhante acontece nas redes sociais, mas de forma digital. Influenciadores como Thais Carla, conhecida como a “obesa profissional”, têm suas imagens exploradas justamente pelo caráter peculiar de sua condição. O conteúdo dela atrai tanto pessoas que consomem para rir quanto aquelas que o fazem para se sentir moralmente superiores ou validar suas próprias posições.

Casos como o de Thais Carla não são isolados. Lembro, por exemplo, da youtuber Alexandra Gurgel do canal "Alexandrismos" (calma PF, não tem relação com o Alexandre de Moraes), que também era conhecida por explorar sua obesidade como conteúdo. Quando resolveu emagrecer e cuidar da saúde, foi cancelada por parte da militância, acusada de traição e hipocrisia. A cantora Adele e a atriz Rebel Wilson enfrentaram reações semelhantes ao emagrecerem.

Existem ainda outros exemplos, como o da transsexual e deficiente Leandrinha Du Art e do influenciador gordo Zé Bertoldo. Não estou dizendo que eles devem se esconder ou evitar aparecer nas redes sociais. O ponto é que o conteúdo que produzem muitas vezes se baseia na autodepreciação e na exploração de condições de saúde, algo que acaba se tornando uma espécie de “mercadoria” no circo dos horrores digital. E nós, como público, compramos esse produto.

Andressa Urach é um caso ainda mais emblemático. Ela constantemente retorna aos holofotes por se envolver em situações cada vez mais chocantes. Sua trajetória inclui desde declarações controversas até casos extremos, como ser filmada pelo próprio filho enquanto transava com anões ou gravar conteúdos pornográficos com a namorada do filho. Enquanto continuarmos dando atenção a isso — seja por curiosidade, repúdio ou indignação —, ela e outros que seguem essa lógica continuarão a monetizar suas ações. Está ganhando dinheiro? Sim, muito. Mas a que preço?

O público, ao interagir e compartilhar, muitas vezes não percebe que alimenta esse ciclo. O bizarro se tornou uma forma eficiente de chamar atenção e gerar renda, mas isso acontece à custa da dignidade e da saúde emocional de quem o produz. Precisamos questionar não apenas quem cria esse conteúdo, mas também nosso papel como consumidores e o impacto que isso tem na cultura digital como um todo.

Clickbait e sensacionalismo

A imprensa e os portais de notícias também são parte desse problema. A busca incessante por cliques transforma manchetes em armadilhas de clickbait, apelando para o sensacionalismo. Isso não apenas contribui para a ansiedade coletiva, mas também reforça o ciclo de consumo de informações superficiais. Não, você não precisa saber que um trem descarrilhou em Bangladesh matando 15 pessoas — a menos que more em Bangladesh ou conheça alguém envolvido. A enxurrada de notícias irrelevantes e alarmistas não apenas distrai, mas desgasta mentalmente.

Nós do A Investigação buscamos romper com esse ciclo. Em vez de reportagens e publicações sensacionalistas, optamos por análises ponderadas e detalhadas, focadas em reflexões mais longas. Nossa missão é informar com profundidade e responsabilidade, sem explorar as emoções e as esperanças da população de maneira leviana. Ainda que essa abordagem resulte em menos retorno financeiro, sabemos que estamos contribuindo para um jornalismo mais ético e que podemos dormir tranquilos à noite, conscientes de que buscamos a verdade acima do lucro fácil.

Alcançando o equilíbrio

Pode parecer paradoxal você estar lendo este texto, produzido por alguém que trabalha com a internet e depende das redes sociais para divulgar seu trabalho. Mas as redes sociais não precisam ser vilãs. O problema não está na ferramenta em si, mas em como a utilizamos. O primeiro passo é reconhecermos que temos um problema. Só então poderemos começar a tratá-lo.

Não estamos pedindo censura ou regulação estatal das redes sociais. Pelo contrário, acreditamos que cabe à população aprender a lidar com essas ferramentas de maneira mais saudável e consciente. A solução não virá de uma intervenção externa, mas de uma mudança cultural que comece com cada indivíduo.

Podemos, por exemplo, reduzir o número de plataformas que usamos diariamente, impor limites de tempo e investir em atividades offline que nos conectem de verdade com o mundo ao nosso redor. Isso inclui substituir parte do tempo gasto nas redes sociais por momentos dedicados a hobbies, estudos, exercícios físicos ou interações presenciais.

Aqui vão mais algumas ações práticas que podem ajudar:

  • Desative notificações desnecessárias. Isso reduz a ansiedade de verificar o celular constantemente;

  • Estabeleça horários específicos para usar as redes sociais. Por exemplo, apenas 30 minutos à noite;

  • Use ferramentas de monitoramento de tempo. Aplicativos como Digital Wellbeing podem ajudar a controlar o uso excessivo;

  • Defina espaços livres de tecnologia. Como o quarto ou a mesa de jantar, para garantir interações mais significativas;

  • Participe de atividades offline regularmente. Pode ser um esporte, voluntariado ou até mesmo um grupo de leitura.

Mais importante ainda, precisamos refletir sobre o que consumimos e sobre o tipo de atenção que damos a conteúdos que, no fundo, só alimentam um ciclo nocivo para todos. Cada curtida, compartilhamento ou comentário em conteúdos sensacionalistas ou autodepreciativos fortalece esse sistema, transformando nossa indignação em combustível para a perpetuação do problema.

O caminho para um uso saudável das redes sociais pode ser desafiador, mas é necessário. Equilíbrio e consciência são as chaves para retomarmos o controle de nossas vidas e, principalmente, para preservarmos nossa saúde mental e nossos valores enquanto sociedade. 

Enfim, que tal sair da internet e ir curtir o mundo real?


*. *. *

        Esse texto de David Agape nos obriga a divulgar novamente o que já foi escrito sobre o mesmo tema por Jaron Lanier, cientista, músico e escritor, mais conhecido pelo trabalho em realidade virtual e sua defesa do humanismo e da economia sustentável no contexto digital. Autor de diversos livros de crítica sobre a Era Digital, lançou em 2018 seu quarto livro, no qual denuncia o Vale do Silício de um modo geral, e o Facebook, em particular, como uma verdadeira máquina de fazer cabeças.

        Um breve resumo do livro pode ser lido neste link. Aqui se reproduz apenas os argumentos apresentados  por Lanier para que as pessoas excluam suas contas das redes sociais.

DEZ ARGUMENTOS PARA VOCÊ DELETAR AGORA SUAS REDES SOCIAIS, frase esta que dá o título ao seu livro e, nele, os argumentos são explicados com detalhes. Vale a pena a sua leitura. A seguir os dez argumentos.

Argumento UM  
VOCÊ ESTÁ PERDENDO SEU LIVRE-ARBÍTRIO

Argumento DOIS  
LARGAR AS REDES SOCIAIS É A MANEIRA MAIS CERTEIRA DE RESISTIR À INSANIDADE DOS NOSSOS TEMPOS

Argumento TRÊS  
AS REDES SOCIAIS ESTÃO TORNANDO VOCÊ UM BABACA

Argumento QUATRO 
AS REDES SOCIAIS MINAM A VERDADE

Argumento CINCO
AS REDES SOCIAIS TRANSFORMARAM O QUE VOCÊ DIZ EM ALGO SEM SENTIDO

Argumento SEIS
AS REDES SOCIAIS DESTROEM SUA CAPACIDADE DE EMPATIA

Argumento SETE
AS REDES SOCIAIS DEIXAM VOCÊ INFELIZ

Argumento OITO
 AS REDES SOCIAIS NÃO QUEREM QUE VOCÊ TENHA DIGNIDADE ECONÔMICA

Argumento NOVE
 AS REDES SOCIAIS TORNAM A POLÍTICA IMPOSSÍVEL

Argumento DEZ
 AS REDES SOCIAIS ODEIAM SUA ALMA

*. *. *

2 comentários: